Entrevista | À conversa com Miguel Szymanski sobre O Grande Pagode
Cristina Dangerfield
Miguel Szymanski chega da praia de bicicleta, acompanhado pelo seu cão, neste dia de céu muito azul e um sol fabuloso, no início de um esplendoroso Outono português. Sentamo-nos no seu jardim no Primeiro Torrão e, enquanto os pássaros chilreiam, falamos disto e daquilo, do Segundo Torrão, e das vistas fabulosas dos bairros sociais da Margem Sul para Lisboa, e o grande pagode em que Portugal se tornou. Adivinharam, estamos a conversar sobre O Grande Pagode, o último policial do jornalista luso-alemão, publicado no início do último Verão.
Portugal Post Ainda esta semana comentaste sobre o Embaixador Americano ter feito um ultimato, a Portugal para escolhermos entre eles, os americanos, ou os chineses para nossos parceiros comerciais. Parece que a realidade estará a ultrapassar a tua ficção. Queres comentar?
Miguel Szymanski Não sei, este livro o Grande Pagode é uma ficção em torno das ligações de Portugal com a China em pano de fundo. E a diplomacia funciona sempre de uma forma muito semelhante. A diferença é que a pressão das grandes potências exerce-se sempre nos mesmos moldes, não costuma é tornar-se pública, e não costuma ser muito descarada, funciona nos bastidores. Desde Donald Trump, há 4 anos, e eu escrevi o livro no ano passado, as coisas tornaram-se muito mais grosseiras, rudes, e o tom muito mais agressivo por parte dos Estados Unidos. Quando no livro tenho um pequeno episódio que parece antecipar aquilo que, actualmente, é tema em Portugal, que é a intervenção aberta, descarada, do embaixador norte-americano, numa entrevista ao jornal Expresso, eu diria que ele nem sequer foi tão longe, porque eu relato essa pressão, mas ainda no círculo de um governo, com uma primeira-ministra fictícia a queixar-se de que o embaixador americano teve um comportamento de cowboy, rude e agressivo, e a fazer pressão para não assinarem o acordo com a China.
Isso é o que está no livro. E a primeira-ministra diz que não, porque, tanto no livro como na realidade, Portugal está de cócoras perante a China, politicamente perdeu imensa autonomia, e está numa situação híbrida, porque a União Europeia se está a afastar muito, e está com imensas cautelas relativamente à China, e há vários países na Europa, entre eles, Portugal talvez esteja na primeira linha, que estão muito ameaçados pelo peso e pela influência chinesas.
PTP E tu achas que isso se deve a quê? Achas que tem a ver com o facto de Macau ter sido português até há relativamente pouco tempo, tem a ver com as nossas crises económicas, tem a ver com a corrupção endémica do país, que também existe em outros países, logo não é bem endémica?
MS Vou responder à tua pergunta: Sim, sim, sim! Claro que Macau já foi a porta para isto muito antes de a China ter ascendido à posição em que está agora. Já muito antes desta ascensão, Portugal era visto como uma porta chinesa para a Europa. E portão sublime ou não sublime, foi pouco sublime, e nós tivemos desde muito cedo uma entrada muito forte de interesses chineses em Portugal, que vão desde a queda da Casa de Macau, vai à Fundação Mário Soares, onde o peso chinês é fortíssimo, passa pelos Casinos e por Stanley Ho e, por detrás disto tudo, quando Macau é devolvido à China, acaba por estar sempre Beijing, e deixou de haver estas políticas de empresários proeminentes como era um Stanley Ho que tinha a sua própria agenda. Deixou de haver agenda pessoais, agora existe a agenda de Beijing. Portugal sofreu desde logo aí uma fortíssima pressão. Os partidos foram financiados de forma muito pouco transparente, a começar pelo Partido Socialista com dinheiro dos casinos e de empresários de Macau, e essa influência de Macau transformou-se numa influência de Beijing.
Além disso, acresce a corrupção como tu dizes, com o financiamento dos partidos, e acresce sobretudo a crise que nós vivemos, em que a Europa foi muito pouco solidária durante a última crise desencadeada pela falência da Lehman Brothers e o “subprime” e a crise bancária. Essa crise acabou por deixar Portugal numa situação muito fragilizada, em que teve de ir buscar dinheiro, onde era possível. Felizmente, tivemos o turismo nessa fase, mas o turismo só, não chegava e, por isso, tivemos os vistos Gold e, sobretudo, vendemos ao desbarato tudo o que eram “Jóias da Coroa”, e vendemos os anéis e vendemos os dedos.
PTP Este teu livro, O Grande Pagode, pretende ser um alerta ou um “statement of fact”?
MS É muito difícil de dizer. Acho que, se for honesto comigo próprio, o livro pretende informar pessoas que não se interessam, e dar-lhes a minha visão dos acontecimentos, mas que é uma visão de “gatekeeper”, numa perspectiva daquilo que é a função do jornalista que é ponderar, não ser ideológico, não ter demasiada cor daqui ou dacolá, mas o que pretendo com o livro é dar uma visão daquilo que se está a passar, mas como sei que a maior parte das pessoas não tem paciência para seguir aquilo que se passa no mundo, e não se apercebe da gravidade de alguns acontecimentos, ponho isto de maneira, que a mim me agrada muito, numa narrativa que é a história de uma personagem, dos seus amores, dos seus encantos e desencantos, das suas fobias, neuroses, aflições, histerismos e histrionismos. É tentar pôr, numa narrativa ligeira e numa embalagem que seja de entretenimento, temas que eu considero sérios, e há uma pretensão pedagógica no meio disto tudo, que não sei se resultou ou não, mas é isto que tenho em pano de fundo.
PTP Este teu último livro, não é mais profundo, mas tem mais ritmo do que o teu primeiro policial, Ouro, Prata e Silva. O primeiro livro da série com Marcelo Silva foca a corrupção em Portugal, na forma de ficção. Em O Grande Pagode passas a um nível muito mais internacional. E o livro parece funcionar com uma sucessão de quadros muito diferentes e mudanças muito rápidas de cenários, como se fosse um “Tatort” (Policial televiso alemão). Aliás eu acho o teu livro genial. Lê-se muito bem. Simultaneamente, é um livro muito rico em informação (séria), sem nunca perder o ritmo. Como conseguiste estruturá-lo por forma a manter o interesse do leitor? Isto não é tarefa fácil.
MS Não sou grande fã daquelas receitas para escrever livros, mas conheço-as. Há aquela máxima do “show, don´t tell” nos livros. Não falo, não sejas panfletário, mas é uma questão de modas. Como é que se conta uma história, é-se planfletário, disserta-se sobre temas para comunicar conteúdos ou embala-se tudo na acção, nos diálogos, etc.? Para mim, estes livros são experimentais do ponto de vista da ficção. No primeiro optei por ser mais panfletário e dar menos importância ao enredo, aquilo que tu chamaste a “meter” para um Tatort e “touché”, porque tenho talvez umas centenas de Tatort que vi ao longo da minha vida em pano de fundo, quando penso num enredo policial, mas como tu sabes se há policiais que não têm uma receita fixa são os Tatort, e funciona com a lógica de dar uma embalagem de entretimento e de policial a temas relevantes para a sociedade. Também isso como ponto comum.
Primeiro fico contente por teres gostado de ler o livro. Quanto à estrutura devo dizer-te que, tal como o primeiro, eu não trabalho nem com cartões de memória, nem com estruturas pré-desenhadas. Não tenho nenhum quadro desenhado na parede para as coisas. Se resultou, ainda bem que resultou, e foi escrito de uma assentada e a história vai surgindo.
PTP E a história acontece em apenas cinco dias! Não tinhas pensado nisso? Vai do dia 10 ao dia 15 de Dezembro, e passa-se muita coisa, há muita acção, de um dia para o outro.
MS É verdade. O anterior acho que se passa em cerca de 10 dias.
PTP Já tinhas essa ideia programada, uma história em cinco dias, ou sentaste-te, começaste a escrever e tudo aquilo aconteceu em cinco dias?
MS É uma pergunta difícil, não sei! É uma parte pelo todo. Pegar numa pequena amostra, e eu queria pegar numa pequena amostra, e partindo de uma pequena amostra, tentar mostrar muito mais do que a pequena amostra. E passa-se em cinco dias, porque em três dias me pareceu curto e não era verosímil para esta história. De facto, o ritmo, como é um jornalista que está por detrás e as notícias são pela sua natureza muito efémeras, e o ponto de partida era uma pequena notícia sobre uma morte num enredo policial [impacta o ritmo].
O outro não, a história das relações de Portugal com a China, que estão em pano de fundo, como disseste, obviamente, arrastam-se desde há séculos, a parte da corrupção partidária há décadas, mas o que está como pano de fundo policial é a notícia sobre a morte de um português de origem africana, que é uma pequena notícia no jornal, que é publicada no dia em que o meu “herói” chega a Lisboa e, por acaso, ele lê aquela notícia e é uma coisa efémera, ele lê a notícia e depois, por coincidências inúmeras, acaba por se cruzar com a mãe da vítima daquele crime que é noticiado no jornal, que lhe pede para a ajudar, e estas coisas não demoram mais do que dias. Aquela lógica de que se um homicídio não se resolve em meia-dúzia de dias, muitas vezes já não se resolve, e por isso a história ocorre em meia-dúzia de dias.
PTP É muito interessante como começas a tua história, porque apresentas logo a trama do livro, em linhas gerais. Apresentas a ministra, que não revelas logo ser a ministra da economia, o que é um meio muito engraçado na apresentação das personagens, porque não ficamos logo a saber o que elas são. Vais desvendando as personagens à medida que avanças na história. E em pinceladas rápidas chegamos lá.
MS Se resultou fico muito contente.
PTP Resultou, é uma boa escolha para o crescendo do suspense da história.
MS A ideia é pegar nalgumas características. Aparece uma personagem que não é assim muito relevante no enredo, mas que é um agente dos serviços secretos e a ideia é pegar em duas ou três características e as pessoas aperceberem-se que tipo de personagem é que é.
PTP E esta personagem do agente mostra que os governos mudam, mas as instituições continuam, sem quebras.
MS A ideia é essa. Não fui para aquela coisa da gabardine e do chapéu, que é um clássico dos policiais, isso em Portugal não resultaria, chove pouco e chapéu já não se usa há muito tempo, mas enfim, um certo mau gosto na forma de vestir, remete um bocadinho para os funcionários públicos. Tento dar três pinceladas, e como o livro não tem muitas páginas, a ideia era um bocado essa, que tu dizes que se revela as personagens em meia-dúzia de pinceladas, que revelam e que fazem nascer imagens nas cabeças das pessoas.
PTP Há uma aspecto no teu livro que é muito interessante. Referes e descreves o Terroso, que eu não sabia o que era, e pensei que fosse o Bairro Amarelo. Mas não é, o Terroso é um bairro de construções ilegais e o Bairro Amarelo é um bairro social (na Margem Sul do Tejo).
MS Certo até determinado ponto, na realidade, o Terroso é o Segundo Torrão. Aqui estamos no Primeiro Torrão. Parece como viajar em primeira classe e em segunda classe. Aquilo não é viajar em segunda classe, nem em terceira, é uma “favela”.
PTP Ou seja, é um antigo bairro da lata, que ainda existem, apesar de oficialmente erradicados.
MS Ainda existem, apesar de já não existirem. É como as bruxas, são difíceis de exterminar. Enquanto a presidente da câmara da Câmara de Almada, Inês Medeiros, diz que Almada tem bairros sociais lindos e que ela não se importava de mudar para um deles, tão deslumbrantes são as vistas, temos este Terroso (segundo Torrão) que é um bairro da lata e é também um bairro social. E [este bairro] com uma série de edifícios na fachada [primeira linha], que é um bairro social horrível, tem uma vista fabulosa sobre o estuário do Tejo.
Quem está no terceiro ou quarto andar, e eu já lá estive num terceiro ou quarto andar, vê o Padrão dos Descobrimentos, os Jerónimos, a Torre de Belém, o Palácio do Presidente da República. Má-vista tem quem vive em Belém que só vê os silos da Trafaria.
A vista é de facto fabulosa e estes bairros têm uma fortíssima ligação com a vida do cidadão comum e das pessoas da classe média, porque são as pessoas que vão fazer limpezas que aí vivem. (Durante a nossa conversa, aparece uma das filhas de Miguel Szymanski. O autor revela que Sofia leu Ouro, Prato e Silva, antes de ele ser publicado, sem autorização, escondendo-o num Harry Potter, e que desta vez foi o autor que pediu à filha que lesse O Grande Pagode e desse a sua opinião.
O que ela fez, contribuindo com várias sugestões e observações para algumas das correcções. Sofia é luso-alemã, absolutamente bilingue e gosta muito de ler).
PTP Já pensaste em escrever um policial com este teu personagem recorrente a partir de Berlim, com algumas cenas em Lisboa.
É que os teus livros têm algo de guia turístico no bom sentido. As tuas descrições dos lugares por onde as personagens passam têm muita vida e cor, o que é muito apelativo para um estrangeiro que queira vir a Portugal. Poderia funcionar “a contrario”.
MS Já pensei, mas teria que escrever em alemão. Em ambos os livros há umas pinceladas muitos ligeiras de Berlim. Só me faltava neste último pôr a Curry 36, as salsichas de Kreuzberg, as Bratwürste, onde Schröder parava de vez em quando para comer uma Currywurst. É uma excelente ideia, mas isso obrigava-me a escrever em alemão.
PTP Não pensas que o leitor português poderia ter interesse numa trama alemã e assim dares a conhecer a cultura alemã? Como luso-alemão, que viveu nos dois países, tu tens esta facilidade de ver de fora para dentro, e de dentro para fora, em ambos os países.
MS É uma ideia gira. Faz lembrar as crónicas que eu escrevi no TAZ (Tageszeitung, jornal alemão), durante três anos. Houve o slogan do Mundial na Alemanha, Zur Gast bei Freuden, e o que eu escrevia no TAZ era Zu Hause bei Fremden, e é o que tu dizes, eu escrevia na Alemanha, sobre a Alemanha, e estava em casa, porque sou alemão, mas mais para o público alemão. Por exemplo, como eu via a forma como os alemães lidam com cães, que é obsessiva, que é diferente da forma como os portugueses lidam com os seus cães. Nesta fase não me apetece muito escrever em alemão.
PTP Neste teu livro o Grande Pagode há dois jornalistas. A certa altura, a jornalista desaparece da trama. Porque é que ela desaparece, e logo de uma forma tão pouco clara? Não sabemos bem como, pode ter sido erro, negligência, planeado…
MS De facto, ela aparece e desaparece rapidamente.
PTP Mas ela escreve o teu livro, ou seja, em O Grande Pagode ela escreve um livro cujo título é O Grande Pagode.
MS Ela não podia continuar, porque ela sabia as coisas todas do livro. Ela torna-se uma personagem desnecessária, no momento em que o investigador principal, Marcelo Silva, se senta com ela numa tarde e fazem o que nós estamos a fazer, que é falar sobre o livro que ela escreveu, e ele absorve toda a informação, e a partir daí ela deixa de ter uma grande utilidade para o enredo. Na altura eu tinha visto umas estatísticas policiais e pensei que era uma forma de fazer desaparecer a personagem.
É mais um tema importante e recorrente na sociedade portuguesa: a violência da polícia em relação aos cidadãos. Isto é um tema também importante nos Estados Unidos. O ponto é que os jornais estão sempre a mencionar, quando é assassinado um empresário português que tem um supermercado na África do Sul, mas nunca li se são mortos mais portugueses do que indianos que têm supermercados na África do Sul. Nunca se faz o contexto. Da mesma forma que aqui, quando há violência policial contra cidadãos, fala-se muito no caso, mas ninguém diz se é mais ou menos.
O meu propósito é através de Marcelo Silva, que a certa altura está a ver estatísticas e se apercebe que a violência policial em Portugal é um décimo da dos Estados Unidos, dar esta informação de que acontece duas vezes por ano que um cidadão seja morto pela polícia. Aqui é mais uma vez a minha vontade de dizer às pessoas que não basta olhar para os eventos em si, e isto vem do meu jornalismo económico. É preciso ver se isto é uma coisa que acontece sempre ou, se por acaso, aconteceu ao meu lado e eu acho que acontece muito, porque aconteceu ao meu lado. Para isso precisamos de “big data”, e isso é o que o Marcelo faz.
Primeiro ele quer vingar a amiga e pega numa pistola, e depois começa a ver que em Portugal [este tipo de ocorrência] não acontece tantas vezes assim.
PTP Mas isso não terá só a ver com o teres sido jornalista económico. Não terá a ver com mentalidades, o ser-se mais ou menos rigoroso, ou absorver-se informação sem questionamento, sem dúvida, resultando isto numa diferença de abordagem, que será cultural?
MS Eu sempre senti isso como mentalidade paternal, porque o meu pai era alemão. Esta maneira analítica de olhar para assuntos, temas, fazer uma dialéctica do pensamento, pesar prós e contras, analisar questões, um raciocínio muito analítico, provavelmente é muito alemão, versus o sentimento que tu descreveste em Portugal, telejornais a abrir com futebol, com emoções fortes, e intuição, que tem vantagens também.
PTP Mas é pouco rigoroso.
MS É pouco eficiente e é pouco produtivo. Mas muitas vezes é mais humano, para bem e para mal. Por um lado, obriga-te a “gramar” o ruído e o lixo dos vizinhos, e dá-te uma tolerância muito maior, e um deixa-fazer. A lei do ruído na Alemanha estabelece as 20h [para início da hora do silêncio]. Se fores pôr o lixo no contentor às 20h05, ouve-se uma janela a ser aberta e aparece logo alguém a citar a lei e a ameaçar chamar a polícia.
PTP No teu livro fala-se nas tríades e é desvendado todo um sistema de corrupção, de criação de fantoches locais, etc. Tu não sentes algum receio quando escreves sobre estes temas?
MS Não porque são temas que já foram públicos. O caso do miúdo ambientalista, atacado por asiáticos com pedras no livro, baseia-se num caso verídico, ocorrido em Macau com um advogado meu amigo e relatado em muitos jornais nacionais e internacionais. A ficção é um refúgio certo nas nossas sociedades. Em Portugal houve tempos em que qualquer tipo de ficção era censurada com o lápis-azul.
PTP Tens planeado um terceiro livro com Marcelo Silva?
MS Tenho, mas se escrever será o último. Apetece-me escrever outras coisas. Já acompanho estas personagens há dois anos e não me agrada a ideia de ficar amarrado.
PTP Tu falas na pandemia, que é uma coisa que inseres à posteriori.
MS Apercebeste-te disso?
PTP Sim, porque há um grande optimismo a seguir à pandemia e voltamos à vida normal, já se sai à noite, “copos”, e afinal ainda estamos na situação em que estamos.
MS Pareceu-me totalmente impossível escrever um livro antes da pandemia. A pandemia já tinha começado e o livro ainda estava nas minhas mãos e parecia-me totalmente impossível escrever um livro que deixasse de fora a pandemia.
Como tenho uma mulher primeiro-ministro, e isso já é uma ficção no contexto contemporâneo, desde Maria de Lurdes Pintasilgo não voltámos a ter uma mulher na chefia do governo, bem posso incluir a pandemia e estamos já num pós-pandemia, e como ninguém sabe o que vai ser o pós-pandemia, nem posso entrar em contradições, porque não sabemos se ele vai ser, nem como ele vai ser.
PTP Disseste que, por vezes, na realidade as personagens são mais inverosímeis do que na ficção. O que quiseste dizer com isto?
MS E são-no muitas vezes. Há personagens que se pusesse num livro ninguém acreditava nelas.
PTP Gosto muito de uma frase tua que é: “Não há almoços de borla”..
MS A frase não é minha. Há aquela expressão inglesa “there are no free lunches”. Existem umas crónicas do João César das Neves, que é um economista e é um pensador de quem eu não gosto nada, professor catedrático, com o título “Não há almoços grátis”.
Não sei se fui buscar aí. Lembro-me de ter estado com José Sócrates, nesta fase mais recente, no caso da Galpgate, e estava-se a falar do processo dele, quando ele disse que era indigno os secretários de estado terem de se demitir por causa de três bilhetes para ir ver jogos de futebol. E eu perguntei-lhe se ele achava normal que os secretários de estado recebam almoços pagos, o hotel, porque não é só o bilhete.
E ele disse-me, “desculpe, mas o senhor está a ser estúpido, então acha que se vendem por não sei quê…”. Estamos a falar de três mil euros. E esta é a noção que as pessoas têm em Portugal, que até 3 mil euros os almoços são de borla!
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