Entrevista | João Ferreira
TPP
PT Post Qual deverá ser o papel de Portugal no contexto europeu e mundial?
João Ferreira Portugal deve assumir no concerto das nações o papel que lhe está reservado na Constituição da República Portuguesa.
O de, em primeiro lugar, mantendo laços privilegiados de amizade e cooperação com os países de língua portuguesa, assumir uma posição de relacionamento mutuamente vantajoso com todos os povos do mundo, no estrito respeito pelas opções e decisões de cada um, e pela independência nacional, rejeitando ingerências ou intromissões.
Nas relações internacionais deve reger-se pelos princípios da independência nacional, do respeito pelos direitos do homem, pelos direitos dos povos, pela igualdade entre os Estados, pela solução pacífica dos conflitos internacionais, pela não ingerência nos assuntos internos dos outros Estados e pela cooperação com todos os outros povos para a emancipação e o progresso da humanidade.
Em segundo lugar, Portugal deve intervir, na medida das suas possibilidades, para o desarmamento geral, simultâneo e controlado, para a dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos.
Para tanto, o Presidente da República deve empenhar-se para o cumprimento da Carta das Nações Unidas e para a assunção da sua defesa.
PTP As legislaturas são para cumprir até ao fim?
JF A longevidade dos Governos depende exclusivamente das políticas que praticam e na resposta que dão ou não aos problemas.
A questão que se coloca é a de saber para quê deveremos admitir que uma qualquer legislatura vá até ao fim do seu mandato, se tal significar criar mais dificuldades aos trabalhadores, às populações a quem deveria servir.
Enquanto Presidente da República não abdicarei de nenhum dos poderes que a Constituição e a lei me conferem.
PTP Como olha para o actual Parlamento, especialmente considerando não haver um acordo formal que garanta o apoio de uma maioria ao governo?
JF Uma vez mais sublinho que a questão essencial não é a de haver um papel assinado ou não, é de se concretizarem políticas que respondam às aspirações e exigências dos trabalhadores.
Na legislatura anterior, não foi o acordo escrito que o anterior Presidente da República exigiu, que criou condições para uma governação que, com limitações, defendeu, repôs e conquistou direitos, salários e outros rendimentos.
Como a recente discussão da proposta de OE para 2021 provou, partindo de posições diferenciadas, com firmeza de princípios, foi possível existir OE, mas, mais do que isso, garantir um conjunto de melhorias na proposta inicial, dando ao Governo os instrumentos para governar.
PTP Preocupa-o mais a estabilidade ou o vigor do governo, particularmente num contexto de várias dificuldades que se antecipam para o futuro próximo?
JF Ao Presidente da República cabe manter um relacionamento institucional estreito e de respeito pelos poderes e papéis de cada um, com o Governo, a partir do Primeiro-ministro. Todos os desafios que temos pela frente, agora expostos com particular nitidez pelas consequências da epidemia de COVID-19, que decorrem de problemas estruturais provocados por décadas de política de direita, tem de ser respondidos e encontram enquadramento na Constituição.
PTP Um dos problemas centrais que os portugueses a viver fora de Portugal enfrentam, é a dificuldade no exercício do seu dever cívico de votar. Seja pela distância que alguns portugueses vivem dos consulados ou pelo facto de eleições diferentes terem métodos de voto diferentes (presencial ou postal). Qual é a sua posição em relação a isto, como vê a inclusão do voto eletrónico para quem vive fora de Portugal e o que poderemos esperar da sua presidência e da sua influência enquanto presidente, relativamente a esta questão?
JF Como ainda recentemente tive oportunidade de afirmar esse é um problema bastante sentido pela Comunidade Portuguesa residente no estrangeiro, mas que não se resume ao momento do voto. Nos últimos anos, temos assistido, fruto da acção de sucessivos governos a um desinvestimento progressivo na rede consular o que levou ao encerramento de muitos serviços consulares ao mesmo tempo que outros concentravam valências a centenas de quilómetros de onde se encontravam anteriormente.
Naturalmente esta política não ajuda, antes pelo contrário, a uma verdadeira ligação às nossas Comunidades. Para o futuro próximo, o que julgo que se impõe é o reforço da rede consular, com tudo o que isso implica de meios - materiais, financeiros e humanos -, o estabelecimento de protocolos com as respectivas autoridades dos países de acolhimento que possibilitem a multiplicação dos locais de votação e em que o Movimento Associativo Português estabelecido nesses países possa ser associado a estes processos.
Relativamente à inclusão do voto eletrónico, não rejeitando em absoluto esta questão, convêm ter presente que as experiências ocorridas, até à data, levantam questões de segurança que mostram que ainda há um caminho a fazer. Por outro lado, convêm ainda termos presente que o voto eletrónico, por si só, não dispensa a presença física em determinado local, designado para esse acto, o que não resolvida a primeira questão, apenas se traduziria em alteração na forma como votaríamos.
PTP O ensino da língua portuguesa no estrangeiro para portugueses de segunda e terceira geração, é um tema muito relevante para quem vive fora, nomeadamente desde a criação da propina de ensino, mas também as várias limitações que os cursos de português oferecem aos pais de crianças e adolescentes, que vão desde a localização aos horários. É importante para si que o governo invista no ensino do português e podemos contar consigo na defesa deste tema?
JF A Constituição da República Portuguesa no seu artigo nº 74, ponto 2, alínea i, faz menção especifica a esta questão. Não faz sentido que para aceder ao ensino básico e ao ensino secundário, os portugueses, em Portugal, não tenham qualquer tipo de propina e os filhos dos portugueses, no estrangeiro, tenham de enfrentar essa propina, assim como não faz sentido os manuais escolares não serem grátis para os filhos dos portugueses, no estrangeiro, à semelhança do que acontece hoje em Portugal. A política que defendo passa pela valorização da Língua e da Cultura Portuguesa.
Ao Presidente da República cabe cumprir e fazer cumprir a Constituição da República Portuguesa. Esta é uma questão onde, claramente, estamos perante um incumprimento que urge reparar e que será, no exercício dos poderes que a Constituição me confere, objecto de analise e intervenção.
PTP Qual é a sua opinião relativamente às tragédias humanitárias no Norte de Moçambique e enquanto Presidente e Comandante Supremo das Forças Armadas, que posição tomaria em relação a este assunto?
JF Quero começar por expressar a nossa solidariedade a Moçambique, ao seu povo e à sua luta. A República de Moçambique tem vindo a enfrentar grupos mercenários terroristas, que são responsáveis por actos de terrorismo gravíssimos contra a população moçambicana, nomeadamente na província de Cabo Delgado.
Condenando veementemente a acção destes grupos terroristas, é necessário chamar a atenção para os interesses que estão por detrás desta nova operação de desestabilização contra Moçambique e o seu povo, e que visam a apropriação de recursos que são essenciais ao desenvolvimento económico e social do Estado moçambicano.
Por isso, é indispensável rejeitar qualquer instrumentalização da situação em Cabo Delgado para abrir caminho ao intervencionismo e a posturas neocoloniais, que desrespeitam a soberania, a independência e a integridade territorial de Moçambique.
Quero reafirmar que a República de Moçambique tem o direito inalienável de defender a sua soberania e a sua integridade, mobilizando os meios necessários, incluindo no quadro da cooperação internacional, para proteger o seu povo, território e recursos, num quadro em que quaisquer apoios a Moçambique devem respeitar a sua soberania.
PTP O partido que o apoia, o PCP, não votou favoravelmente em nenhuma das votações no parlamento relativas ao estado de emergência. Teria vetado a sua aprovação?
JF Como por diversas vezes já referi, o país precisa de medidas de emergência, que nalguns casos tardam em ser adoptadas. De reforço do SNS - profissionais, equipamentos e infraestruturas. De adoção de medidas de proteção da saúde - nas empresas, nos locais de trabalho, na habitação, nos serviços e equipamentos públicos, incluindo nos transportes públicos, tendencialmente em todas as áreas da vida social. Precisa de medidas que reforcem o mercado interno, que permitam desbloquear a oferta, dinamizando a produção nacional, assegurando a solvência de milhares de MPME, e a procura, valorizando os salários e os rendimentos das famílias.
O país não precisa de estados de emergência que limitam direitos, liberdades e garantias, constitucionalmente consagrados, e que em nada têm contribuído para adotar estas medidas de emergência em falta.
O Estado de Emergência não era necessário para assegurar as respostas à pandemia. Todas as medidas, do confinamento à requisição civil de trabalhadores e de meios, são enquadráveis na legislação em vigor. Pelo contrário, o Estado de Emergência foi usado para dar cobertura a atropelos às liberdades e garantias que, mesmo e particularmente neste quadro, devem ser defendidas.
Ao Presidente da República cabe propor o Estado de Emergência. Eu não remeteria ao Parlamento Português uma tal proposta.
PTP Como presidente irá jurar fazer cumprir a constituição portuguesa, que tem inscrita a frase “assegurar o primado do Estado de direito democrático e de abrir caminho para uma sociedade socialista”? Como caracteriza aquilo que deveria ser uma sociedade socialista nos dias de hoje?
JF A expressão que refere está consagrada, não no articulado da Constituição, mas antes do seu preâmbulo.
Apesar das várias revisões, que a amputaram e pontualmente a desfiguraram, a Constituição conserva um sentido geral de progresso e de justiça social, um valioso programa de desenvolvimento, que considera inseparáveis as vertentes política, económica, social e cultural da democracia, aliadas à soberania e independência nacionais. Um programa que inscreve os direitos dos trabalhadores como intrínsecos à democracia; que reconhece às mulheres o direito à igualdade no trabalho, na família e na sociedade; que consagra importantes direitos das crianças e dos jovens, dos reformados, dos cidadãos com deficiência; que proíbe as discriminações, as exclusões e combate as injustiças sociais; que preconiza a subordinação do poder económico ao poder político.
PTP Muitos avançam que a crise gerada pela pandemia Covid-19 é uma oportunidade para rever o modelo sócio-económico dominante no mundo global. Partilha essa avaliação? Que inflexão proporia?
JF Há quatro elementos que se tornaram, digamos assim, mais evidentes com esta pandemia.
A importância e a centralidade do trabalho e dos trabalhadores, essenciais, indispensáveis para manter o país a funcionar; o valor da produção nacional, que assegure o abastecimento do mercado interno e a dinamização da economia; o papel do Serviço Nacional de Saúde, como única garantia de que todos os cidadãos têm direito a saúde; e a importância do Estado na resposta aos problemas mais candentes das sociedades humanas.
Uma outra atenção a cada uma destas realidades comporta essa mudança de rumo que é necessária.
Mas como sabe, o Presidente da República não Governa. Mas não pode abdicar de nenhum dos seus poderes para chamar a atenção para a importância destas questões. Para, com coragem e confiança assegurar um horizonte de esperança no futuro de Portugal.
PTP Portugal reconheceu oficialmente Juan Guaidó como Presidente interino da Venezuela no ano passado e a União Europeia, juntamente com mais de uma dúzia de países da América Latina, não validou a mais recente eleição venezuelana que deu maioria a Nicolas Maduro. Para o presidente João Ferreira, quem será o seu homólogo venezuelano?
JF O Presidente da República deve assegurar uma intervenção, no relacionamento com outros países, que tenha em conta as regras do direito internacional, os interesses mútuos e, particularmente os interesses das comunidades portuguesas.
O alinhamento com a estratégia de ingerência do imperialismo norte americano na Venezuela, como, aliás, em muitos outros países nos últimos anos, não corresponde a nenhum desses elementos.
Os interlocutores do Estado Português e dos seus representantes têm de ser aqueles que cada povo, de forma livre e sem ingerências, decida. Afinal, com quem dialoga o Governo português quando tem de tratar de problemas relacionados com a comunidade portuguesa na Venezuela?
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